Capítulo 19
Todos os olhares se voltaram para mim.
Não foram olhares hostis, tampouco simpáticos, era apenas atenção dura, cortante. Bocas imóveis, olhos vidrados. Senti que estava nú.
Notei um homem com um bigode fino, sentado em uma cadeira no canto da sala, vestia um sobretudo carmesim. Ele me encarava por trás de óculos redondos e finos, como se analisasse a estrutura óssea do meu rosto. Quando abaixei o olhar, percebi: Um coldre à sua cintura, sustentando uma pistola de pederneira.
O cabo era de madeira escura, polida. Com detalhes em latão dourado, que reluziam com a luz do sol. A coronha, curvada com elegância, encaixava-se naturalmente à palma da mão.
O cano era longo, azulado, em ferro frio. Sobre ele, a pederneira, mecanismo de faísca. Havia marcas de uso, como se estivesse disparado recentemente, estava claramente carregada.
Aquela pistola não estava ali por acaso, ele era do tipo de violência que preferia o duelo ao massacre.
— Aquele homem está armado. — Apontei para o homem de bigode, puxando a manga do paletó de Holderlin.
— Todos aqui estão armados, aquele é Norman, duelista aposentado. — Holderlin respondeu, parando do meio da sala.
— Por que ele está usando uma pistola tão antiga?
— Tradição. — Interrompeu Klages.
Uma mulher sentada numa mesa, de cabelos negros presos em um coque minúsculo, repousava a mão sobre a maior mesa da sala. Seus dedos tocavam casualmente o cabo de uma adaga negra, como a de Jasper.
Do outro lado do salão, um jovem todo de preto encostava-se em uma parede.
Estava segurando uma pistola de pederneira de cano duplo, decorada com símbolos. Ele me olhou com tédio, como se eu fosse a décima primeira aberração do dia.
Mais ao fundo, um senhor muito idoso, murmurava para si mesmo, acariciando o cabo de uma espada curta encurvada como uma cimitarra.
Havia outros: dois irmãos gêmeos tagarelando entre si, com trajes simétricos que, à luz certa, deixavam entrever facas nos seus cintos.
Um rapaz de luvas de couro carregava uma escopeta negra de cano duplo. Uma mulher loira segurava um livro com capa de couro. Um jovem que dormia escorado em uma cadeira possuía um revólver prateado em seu coldre.
Holderlin se sentou em uma mesa redonda, os olhares que estavam focados em mim se dispersaram, ele convidou eu e Klages a se sentar.
A melodia no alaúde continuou, sentei-me, ao lado de Klages e de frente para Holderlin.
— O senhor não era padre? — Perguntei confuso diante daquela situação, tudo que vi até agora não teve relação nenhuma com a religião, muito pelo contrário. A filosofia de Holderlin pregava a extinção da raça humana, diferente do que Claryce havia me falado. Klages me encarou com indiferença.
— Ser padre não significa ser servo da Igreja. — Ele respondeu, mesmo com o barulho do salão, ouvi perfeitamente. — Os sacramentos me foram dados, sim. Mas os sacramentos, Eric, são ferramentas. Assim como a cruz foi instrumento de tortura antes de ser símbolo de redenção.
Klages parecia admirar cada palavra de Holderlin.
— A religião se deturpou ao tentar salvar aquilo que deveria morrer. O ser humano. A alma, Eric… A alma é um parasita. — Ele levantou o olhar, agora estava encarando o fundo dos meus olhos.
— Claryce acredita na redenção — Disse ele por fim. — Eu acredito na purificação pelo fim. Ela viu em mim um confessor. Mas o que ela não entende… É que alguns de nós foram enviados não para salvar, mas para julgar.
Foi então que notei: no pescoço de Holderlin pendia uma cruz de prata, rude, sem brilho, embaçada, como se tivesse sido retirada de uma tumba. Ali não havia Cristo.
— Há alguns padres aqui.. Gapon é um bom exemplo. — Ele apontou para um homem que estava parado próximo a uma das colunas laterais, em silêncio. Usava uma longa túnica negra, tradicional veste dos padres ortodoxos, que caía até os tornozelos em tecido espesso, sem ornamentos. No pescoço, pendia uma cruz dourada grande e pesada.
Seu rosto era pálido, envolto por uma barba escura que descia até a clavícula. Os olhos fundos. O cabelo, escuro e ondulado, caía até os ombros, desalinhado.
— Ele é soviético? — Perguntei com ingenuidade.
— Sim, Alexei Gapon. Emil o conheceu em sua viagem para a Rússia. — Holderlin repousou na cadeira.
— Ele acredita numa “Misantropia Cristã”. Coisa que eu não vou saber explicar, vá até ele e pergunte. — Disse Emil.
No instante em que me levantei da cadeira, em direção ao padre, um estouro cortou o ar como um chicote. Um tiro. ecoou na janela como um trovão.
Todos os olhares se voltaram. Em seguida, algo caiu no centro do salão com um baque seco.
Era uma pomba branca, morta, com o peito rasgado por um disparo de chumbo, possivelmente vindo das pistolas de pederneira que os homens carregavam.
Suas asas tremiam em espasmos, o sangue formava uma pequena poça embaixo dela.
Alexei, em silêncio absoluto, fez o sinal da cruz com três dedos sobre a pomba. Seus olhos brilhavam.
— É um milagre, irmãos! — Ele disse em direção a todo o salão, com um sotaque russo forte, que calou-se. Logo começaram a bater palmas.
Um homem desnutrido, de paletó escuro, com cicatrizes no rosto, se adiantou. Ajoelhou-se diante da ave, ergueu-a com ambas as mãos em direção ao salão e a olhou por um breve segundo, contemplando.
A cena estava sendo iluminada pelo sol da janela, formava a sombra no chão.
Sem dizer palavra, rasgou o corpo da pomba ao meio com as mãos. Suas vísceras ainda quentes escorreram entre seus dedos.
Ele levou um pedaço à boca, mastigou e engoliu, como um animal faminto. Depois, estendeu o outro pedaço para os presentes. Um por um, formaram uma fila, alguns comiam aquilo como se fosse uma hóstia.
Eu me pus ao lado do padre, que observava a cena com calma, ele murmurava para si mesmo:
— “Quem come da carne da inocência sem temor, ou será condenado… ou será chamado a testemunhar a última aliança.”
Permaneci imóvel. Aquilo me paralisava mais do que qualquer assassinato que eu tivesse cometido. Não por medo, mas por um reconhecimento: aquela não era mais uma reunião. Era um culto, um pacto, um ritual.
— O que foi isso? — Perguntei ao padre, quase sussurrando.
Ele permaneceu em silêncio, depois respondeu:
— Um sinal. Essa pomba, caída e rasgada, não é acaso. É testemunho.
— Isso me parece… blasfêmia. — As palavras escaparam da minha boca.
— O que? Você acredita que Deus é uma criança assustada com o que os homens fazem? — Seu sotaque tornava cada sílaba mais grave.
— Você é padre. — Repeti. — Jurou servir a Deus.
Ele virou-se lentamente, de modo que a cruz grande e dourada em seu peito refletiu a luz do vitral.
— Sim, padre. Não servo da moral. A moral é humana, podre, feita de concessões. Mas o Reino de Deus não é uma democracia, jovem. — Ele falava calmo. — O Reino é espada. É fogo. É juízo. E o Cristo, quando voltar, não virá com ovelhas, virá com espadas, anjos e flagelos.
— Então crê no apocalipse? — Perguntei.
— Eu creio na promessa. Quando for tarde demais, os olhos do Cordeiro se abrirão como lâminas. E então, nós — Ele enfatizou. — Não oraremos pela salvação dos justos. Mas julgaremos os vivos e os mortos.
— “Nós”? — Perguntei, inquieto. — Quem é “Nós”?
Ele se inclinou levemente.
— Os despertados. Aqueles que entenderam que a humanidade não precisa de consolo, mas de sentença. Nós somos os precursores da Última Ceia. Mas nesta ceia, o pão será carne e o vinho será sangue.
— E Cristo? — Perguntei por fim.
Gapon deu um beijo na cruz em seu peito.
— Cristo veio para separar. Não para unir. O mundo deformou sua imagem, fez dele um pastor gentil. Mas ele mesmo disse:
“Não vim trazer paz, mas a espada”
Enfim a “Misantropia Cristã”. Ele pousou a mão em meu ombro.— Você já viu a morte. Você carrega o sangue. Mas hesita… Não se pode curar um cadáver.

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